2/15/2012

PAPÁ HEMINGWAY


“Se você quando jovem teve a sorte de viver em Paris, então a lembrança o acompanhará pelo resto da vida, onde quer que você esteja, porque Paris é uma festa ambulante” (E.H.)


Joaquim Branco


Uma de minhas preferências entre autores é Ernest Hemingway (1899-1961), esse americano intranquilo que atravessou a 1ª metade do século XX se metendo em safaris na África, lutas de boxe em Nova York, pescarias perigosas no Gulf Stream, touradas na Espanha, noitadas em Havana e até em guerras pelo mundo.

Papá Hemingway, como era carinhosamente apelidado, ganhou o prêmio Nobel em 1954, foi um escritor admirável, desses que não conseguem separar o que escrevem da própria vida, como Melville, Proust, Camus, Fusco. Orientou-se, como os demais, pelo ideal de Mário Faustino: “Poesia e vida minha seguirão paralelas”.

“A vida de todo homem termina da mesma maneira. Apenas os pormenores de como viveu e morreu distinguem um homem de outro”, confessou um dia ao seu biógrafo, o jornalista A.E.Hotchen.

O Hemingway ainda novo, ‘refugiado’ na Europa nos anos 20 e participante da "Geração Perdida", é quem protagoniza Paris é uma festa, livro de memórias escrito no final dos anos de 1950, e lançado pela Bertrand-Brasil, em tradução de Ênio Silveira.

Sua escrita rápida – quase telegráfica, raros adjetivos – aqui ainda não se impõe totalmente. Este era o jovem Hemingway que estava descobrindo os clássicos nas livrarias e bibliotecas ao longo do Sena, mantendo encontros com os figurões literários da época (Gertrude Stein, Ezra Pound), e alternando momentos de êxtase com crises melancólicas, às vezes passando por dificuldades na capital francesa.

Com Ernest, podemos nos sentar num café da Place Saint-Michel ou do Boulevard Saint-Germain, para escrever um conto “que se passava no Michigan” e ver a moça que “entrou no café e sentou-se perto da janela. Era muito bonita, com um rosto fresco como moeda acabada de cunhar, se é que se possam cunhar moedas em carne tão macia, coberta de pele umedecida pela chuva. [...] Olhei para ela e senti-me perturbado, numa grande excitação. Desejei colocá-la no meu conto,[...] O conto escrevia-se por si próprio, e eu tinha dificuldade em conduzi-lo. Pedi outro rum Saint James, observando a moça [...] – Eu te vi, oh, beleza, tu me pertences agora, seja quem for que estejas esperando e mesmo que nunca te veja em toda a minha vida – pensei. – Tu me pertences, toda Paris me pertence e eu pertenço a este caderno e a este lápis. Voltei a escrever, entrei a fundo na história e me perdi nela. Agora quem a escrevia era eu; o conto não escrevia mais a si próprio, de modo que não tornei a levantar a cabeça.” (p. 20)

A radiografia da cidade, surge aqui e ali nos pequenos e interessantes capítulos em que se divide a obra, onde está inteira a impressão do escritor no seu início de carreira, numa grande capital europeia: “Mas Paris era uma cidade muito antiga, nós éramos jovens e nada ali era simples, nem mesmo a pobreza, nem o dinheiro súbito, nem o luar, nem o bem e o mal, nem a respiração de alguém que deitada ao nosso lado dormisse ao luar.” (p. 72)

Como esses fragmentos de textos, há inúmeros outros neste A moveable feast – título do original –, que pode parecer o roteiro biográfico de um grande escritor pela Paris trepidante dos anos 20, mas, para o leitor, transforma-se numa insólita narrativa que fascina e prende na leitura. E, no seu autor, mal dá para reconhecer o caçador de leões que, cerca de quarenta anos depois de viver esses episódios, no auge do seu sucesso artístico, aos 62 anos de idade, iria apontar a carabina de caça para a boca e disparar impiedosa e lamentavelmente.

(HEMINGWAY, Ernest. Paris é uma festa. Trad. de Ênio Silveira. Rio de Janeiro: Editora Bertrand-Brasil, 248 pp., R$30,00)






Um comentário:

Anônimo disse...

"A vida de todo homem termina da mesma maneira. Apenas os pormenores de como viveu e morreu distinguem um homem de outro”.
Joaquim,
Esta confissão de jornalista A.E.Hotchen me impressionou muito, talvez por já ter pensado muitas vezes sobre isso e nunca ter dito a ninguém. Estou dizendo hoje a você.
Angela Nair