1/24/2015

O CONTO MODERNO SEGUNDO JAMES JOYCE


O conto, uma das mais antigas formas de narrar, apresenta na história da literatura uma sequência de grandes mestres, desde as velhas narrativas orais às contemporâneas.

Foi contando histórias que Sherazade virou personagem de As mil e uma noites e foi no Novecentos que Machado de Assis, Tchekhov e Maupassant e, no século XX, que Hemingway, Cortázar, Borges e Faulkner criaram obras geniais.

Há algum tempo, resolvi reler um conto de James Joyce (1882-1941) intitulado “Os mortos”, de Dublinenses (Civilização Brasileira, Trad. Hamilton Trevisan, 1964), um livro que eu havia lido em 1965.
Trata-se de um dos seus melhores trabalhos, segundo a crítica, mas que, na época, não me chamou muito a atenção. Esta segunda leitura me mostrou como eu não estava preparado para a empreitada. O conto é mais uma novela, pois vai da página 143 à 182.

Pelo título, espera-se algo diferente, mas a primeira cena abre-se com um baile organizado anualmente pela família Morkan – as irmãs Júlia e Kate e sua sobrinha Mary Jane –, no sobrado em que moravam, na Ilha de Usher, na Irlanda. Júlia e Kate eram duas senhoras idosas “um pouco rabujentas” (p. 144), que não admitiam ser respondidas e tinham uma serviçal chamada Lily que “raramente cometia erros” (p. 144).
Quase toda a narrativa tem como cenário a festa que as Morkan organizaram – Júlia para seus amigos do coro e Kate para seus alunos de piano.

James Joyce então vai construindo cena por cena as ações do conto dentro do ambiente do baile. Ali os personagens falam dos filhos, de bebidas, dos bordados, fazem fofocas e até comentam sobre política como no diálogo entre Molly e Gabriel:
“– Oh, meu ingênuo amigo! Descobri que você escreve para o Daily Express. Não sente vergonha disso?
– Por que deveria me envergonhar? – perguntou Gabriel piscando os olhos e tentando sorrir.
– Bem. Estou envergonhado de você – disse ela com franqueza.
– Pensar que escreve para um jornal como esse. Não sabia que era britânico.” (p. 153)
“[...] Não sabia como enfrentar o ataque. Queria dizer que a literatura estava acima da política” (p. 153)

O conto se desenvolve até a página 166 apenas em torno de amenidades. Joyce preparava o bote. E ali mesmo ele dá o primeiro toque no coração do tema: “Nossa passagem pela vida é marcada por muitas dessas recordações e se tivéssemos de pensar nelas todo o tempo, não nos sobrariam forças para desempenhar corajosamente nossas tarefas entre os vivos” (p. 166)
Logo após, volta ao ritmo anterior; na página 173 a festa termina e o casal D’Arcy – Gretta e Gabriel – assume o centro das ações.

Nesse ponto é que começa verdadeiramente o conto. Toda aquela massa ficcional servira apenas de anteparo ou de ante-câmera para o que Joyce queria contar e se concentra nesta magnífica imagem: “Momentos de sua vida íntima irromperam como estrelas na memória.” (p. 174)

O casal, já em casa, no preâmbulo de uma cena íntima, Gretta conta a Gabriel – e agora tudo se passa no território da memória – sobre um rapaz chamado Michael que conhecera em Galway e com quem tivera uma ligação amorosa, mas o jovem morreu aos 17 anos. “Ele estava doente na pensão em Galway e não o deixavam sair. Sua família, que morava em Oyghterard, tinha sido avisada. Dizem que definhava [...]” (p. 179)
“Na noite anterior à partida [dela] estava em casa de minha avó em Nun’s Island, arrumando as malas, quando ouvi uma pedra bater na vidraça. Os vidros estavam tão embaçados que não pude ver nada. Desci correndo as escadas, vestida como estava, e dei furtivamente a volta pelos fundos da casa e lá estava o pobre rapaz, num canto do jardim, tiritando de frio. – E não o mandou voltar para casa? – perguntou Gabriel. – Implorei que o fizesse; disse que a chuva ia matá-lo. Respondeu que não queria viver. Lembro-me tão bem de seus olhos! Tão bem! Estava parado perto do muro onde havia uma árvore.” (p. 180)

Seguem-se belíssimas descrições da morte de Michael e pensamentos do narrador de que transcrevo dois fragmentos: “Um por um, estavam todos se transformando em sonhos” (p. 181) e: “Sua alma acercava-se da região habitada pela vasta legião dos mortos.” (p. 181)
O conto se fecha com um voo cinematográfico da memória pelos recantos do cemitério em que jazia o jovem Michael: “Sua alma desmaiava lentamente ouvindo a neve caindo suave através do universo, caindo brandamente, como a queda final, sobre todos os vivos, sobre todos os mortos.” (p. 182)

4 comentários:

anna carolina disse...

Maravilhoso o seu comentário, deu vontade de ler o conto. Vou fazer isso logo. Obrigada, Joaquim, você é brilhante!
Anna Carolina

Joaquim Branco disse...

Pois é, Anna Carolina, meu objetivo é esse mesmo. Que as pessoas leiam o conto do Joyce, uma peça de rara qualidade.

Luis Antonio Martins Mendes disse...

Tenho que ler este conto para aprender e melhorar.

Anônimo disse...

Oi Joaquim, como é bom ler seus profundos e esclarecedores textos. Vou reler os Dublinenses! Obrigada! Um abraço