2/26/2015

O CONTO, ESSA VALISE DE EMOÇÕES



O conto – seja ele muito curto ou apenas curto, experimental ou não, ou ainda o simplesmente tradicional conto realista com enredo claro e delineado – apresenta um limite de extensão, a partir do qual será considerado novela. Com tempo e espaço condensados, o contista tem que ser incisivo desde sua introdução, portanto todos os detalhes que vão sendo revelados devem ser observados atentamente pelo leitor com pena de se perder algo que as entrelinhas trazem implícito e que vai ser determinante para o clímax e a realização da história.

Julio Cortazar, no capítulo “Alguns aspectos do conto”, em seu Valise de cronópio (São Paulo: Perspectiva, 1974) mesmo reconhecendo que não há uma receita para se fazer um conto, propõe o que ele chama de “pontos de vista” – elementos que funcionam para formar a estrutura desse gênero literário.

Paralelamente à noção de limitação de páginas, Cortazar lembra, como decorrência disso, a eliminação de todos os elementos gratuitos ou decorativos do seu enredo, e acrescenta que tempo e espaço devem estar “submetidos a uma alta pressão espiritual e formal” (p. 152) para que se produza uma “espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário” (p. 152).

Além disso, o ficcionista precisa manter a rédea do tempo e do espaço sob intensa pressão, tanto no que se refere ao enredo quanto à escritura utilizada, sem o que ficaria comprometida a realização do texto como relato ficcional.

Cortazar chega a afirmar que “um conto é ruim quando é escrito sem essa tensão que se deve manifestar desde as primeiras palavras ou desde as primeiras cenas” (p. 152).
A essa intensidade e tensão, alia-se um outro componente: o elemento ‘significativo’ do conto, que, ligado à temática, consiste na escolha de “um acontecimento real ou fictício que possua essa misteriosa propriedade de irradiar alguma coisa para além dele mesmo, de modo que um vulgar episódio doméstico, como ocorre em tantas admiráveis narrativas de uma Katherine Mansfield ou de um Sherwood Anderson, se converta no resumo implacável de uma certa condição humana, ou no símbolo candente de uma ordem social ou histórica” (p. 152-3).

Essa “misteriosa propriedade” – que representa um corte no cotidiano, no trivial, no puramente episódico e epidérmico – é que dá a qualquer narrativa o status de qualidade, de dinamicidade com o tempo e além dele, de cruzamento com o espaço comum dos acontecimentos, para se caracterizar como obra maior destinada a vencer as contingências da própria época em que foi escrita para se tornar um clássico da literatura.
Daí se concluir que não é a escolha do tema propriamente o que vai elevar o conto à categoria de esmero ou de “classicidade”, mas toda uma combinação de condições que presidem a sua elaboração pelo autor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CORTAZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In:______. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 149.

(*) Este texto é parte de meu próximo livro sobre o minimalismo na literatura, intitulado O conto à meia-luz.

Um comentário:

ronaldo disse...

Joaquim, dessas coincidências pra lá de surrealistas, acabei der ler nesta exata manhã a novela O Perseguidor, do Cortázar. Abro o computador e dou com seu texto com ele analisando aspectos do conto no Valise de cronópio (que não li).
Uma belíssima edição (como sempre) da Cosaf Naif, esse volume que acabo de ler traz preciosas ilustrações de José Muñoz e uma tradução mias-que-perfeita do Sebastião Uchoa Leite (também, pudera, além de ótimo poeta, o "SUL" foi um de nossos melhores traudtores). O Perseguidor, novela de 1959, é um livro sobre o jazz (uma das paixões de Cortázar, ao lado do box) e tem como foco um saxofonista claramente baseado no grande Charlie Park (aliás, a novela é dedicada a ele). O personagem principal, Johnny Carter, vive a dizer estranhos disparates, sua mente vive à deriva, levada pelas drogas e pela esquizofrenia. O narrador, um critico de jazz, acaba de escrever um livro sobre ele. Melhor, sobre sua música, pois no fundo acha o personagem Johnny nada menos que patético. Mas quer saber a opinião dele, quando descobre que dentro de sua aparente apatia Johnny havia lido o livro. Em frases esparsas e meio descompassadas, Johnny critica o livro, dizendo que Bruno (o autor) se limitou a falar de sua música, esquecendo-se dele, de sua pessoa: " É como num espelho - diz Johnny - No princípio, eu acreditava que ler o que escreveram sobre a gente era mais ou menos como a gente olhar-se a si mesmo e não no espelho. Admiro muito os escritores, é incrível as coisas que dizem. Toda essa parte sobre as origens do bebop...". Na verdade, o crítico (autor) focou seu texto na música e não na pessoa do músico, para poupar o personagem. Um estranho personagem, leitor de Dylan Thomas. Suas últimas palavras, e não podiam ser outras, foram a do verso de Dylan Thomas "O make me a maask" ("Oh faz-me uma máscara!"). Cortázar sempre fascinante. Ronaldo Werneck