5/09/2016

O FINGIMENTO CONTROLADO




O FINGIMENTO CONTROLADO (texto resumido de
ensaio para o curso de Doutorado na UERJ)

Joaquim Branco

Se Daniel Defoe (1661-1731) soubesse, no século XVIII, que seu pioneirismo como um dos criadores do gênero Romance iria, quase três séculos depois, ainda despertar interesse e opiniões, talvez esboçasse um sorriso inglês de homem prático ligado ao comércio, ao jornalismo e às coisas mundanas.
Até a chegada do Iluminismo só era aceita pela sociedade a escrita elegante das Belas Letras, representada pela poesia clássica, o teatro, a oratória e o velho romance. Não havia lugar para o cotidiano. Por outro lado, fora da aristocracia, o público, ainda diminuto, ao mesmo tempo que ansiava por se ver retratado nos livros, manteve-se, de início, refratário a mudanças. Mas logo as coisas se transformaram, e a ficção começou a dominar a cena com os romances de Rousseau, Laclos, Sterne e o próprio Defoe.
O ‘Sistema’, até esse momento, aceitava apenas os relatos que se baseassem na verdade e que não o contrariassem, e qualquer tema que fugisse disso ou extrapolasse esses ‘muros’, representaria perigo para o status quo e deveria ser combatido.
Assim é que surgiu – por parte da Igreja, dos governos, da ordem vigente enfim –, um mecanismo de censura e controle em relação aos novos livros de aventuras envolvendo temas populares. Esse conjunto de regras e sua ação em relação ao ficcional inspirou o professor e crítico Luiz Costa Lima a criar a teoria do Controle do Imaginário.
A descoberta do cotidiano, favorecida pelo aparecimento das grandes cidades como Londres e Paris, propiciou o surgimento do ficcional, quando os longos relatos foram substituídos por histórias mais curtas e que falavam mais de perto ao homem do Setecentos. Este – que o prestígio do comércio fez ascender a uma nova classe, a burguesia – se sentia pouco à vontade com as novelas pastoris e suas citações latinas, temas e personagens artificiais e o tom aristocrático de textos com figuras de linguagem que lembravam a Grécia Antiga.
Havia, por isso, um clima propício a histórias que buscassem uma sintonia com um público emergente cujas profissões variavam entre “as classes de homens práticos que procedia ao desenvolvimento do comércio, da navegação e dos misteres mecânicos, origem da indústria que no século XIX faria da Inglaterra um dos grandes potentados políticos do mundo.” (Simões, 1964, p. 6)
Recheado de princípios morais, de fantasias, profecias e ainda por cima entediante, o antigo romance era evitado pelos leitores, alguns até da própria aristocracia. Isso explica o ambiente favorável à novidade trazida pelos ficcionistas. Nessa linha, Defoe aos poucos foi conquistando uma legião de leitores no território inglês e em toda a Europa, dentro de uma nova classe, a burguesa, que substituiu a aristocracia e elegeu os valores dali pra frente.
Em 1720, ocorreu uma epidemia de peste que assolou Marselha causando cem mil vítimas mortais, e isso chamou a atenção de Defoe para o tema, pois Londres estava, na época, ameaçada de ver reacendida a peste que matara mais de duzentas mil pessoas em 1665. Aproveitando a ideia, o nosso autor, em apenas dois anos levou ao público "Um diário do ano da peste", livro que fez o maior sucesso entre leitores ingleses e europeus. Essa nova literatura buscava suas fontes nos acontecimentos e aventuras do homem comum e se distanciava dos temas caros à nobreza.
Contra essa nova onda denominada “romance”, que ‘ameaçava’ a ordem vigente, armou-se o Controle do Imaginário. Para se proteger, os autores começaram também a preparar estratagemas como: sua colocação como o próprio Editor do livro, o uso de pseudônimos em vez do próprio nome, a elaboração de prefácios em que se diziam respeitadores da religião e do poder, e, por fim, a garantia de que seu relato era a expressão da mais pura verdade.
Foi a partir do uso de todos esses artifícios e, colocando-se ele mesmo dentro do Controle, que Daniel Defoe conseguiu driblar o mecanismo que se instaurara e publicar seu livro.
Séculos de motivos religiosos e políticos dificultaram o caminho do ficcional, mas algo se abria com o Século das Luzes, que vinha com a bagagem cheia de novidades: numa mão, os filósofos do Iluminismo; na outra, os novelistas populares que aproveitavam a novidade do Romantismo. Na sociedade, uma burguesia comercial nascente a quem a História, durante tanto tempo, servira à imaginação, e agora não se interessava mais por ela nem como curiosidade.
Começou a se fazer então a perigosa travessia que mais tarde deu ao romance a sua autonomia e a Daniel Defoe a fama de pioneiro. O final de seu "Um diário do ano da peste" é muito ilustrativo, pois, ao mesmo tempo que acentua o caráter do Controle, numa auto-proclamação em tom moralizante, sintetiza tudo em um quarteto composto por versos irônicos e aliviadores:

"Aqui, não posso ir adiante. Serei considerado um censor e talvez injusto se entrar na desagradável tarefa de refletir, por qualquer que seja o motivo, sobre a ingratidão e o retorno a todas as formas de perversidade entre nós, das quais eu muito fui testemunha ocular. Concluirei, então, o relato deste calamitoso ano com um vulgar porém sincero verso de minha autoria, que coloquei no fim das minhas anotações cotidianas no mesmo ano em que foram escritas":

Terrível peste esteve em Londres
no ano de sessenta e cinco
cem mil almas levou consigo
mesmo assim, estou vivo!
(Defoe, 2002, p. 279)

Bibliografia:
Costa Lima, Luiz. “L’imaginazione e i isuoi confini”. In Il Romanzo. Itália, Torino: Giulio Einaudi, 2003.
______. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
______. O controle do imaginário - razão e imaginação nos tempos modernos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
______. O fingidor e o censor - no Ancien Régime, no Iluminismo e hoje. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.
Defoe, Daniel. Um diário do ano da peste. Trad. E. San Martin. Porto Alegre, 2002.
Simões, João Gaspar. “Daniel Defoe, precursor do romance moderno”. In: Diário da peste em Londres. Lisboa: Presença, 1964.

(quadro elaborado por mim para ilustrar o trabalho)

3 comentários:

Ricardo Alfaya disse...

Muito interessante esse texto sobre a origem do romance. Abcs, Alfaya.

Joaquim Branco disse...

É, Alfaya, trata-se de um fragmento do meu trabalho sobre a Teoria do Romance, no curso de Doutorado na UERJ, dado pelo grande professor e crítico Luiz Costa Lima.

Cataguases Notícia disse...

Excelente texto!