9/18/2016

DE VOLTA AO PASSADO



DE VOLTA AO PASSADO

Joaquim Branco



As viagens literárias são as mais fruitivas, dizem alguns, porque a imaginação voa livre de empecilhos ou mal-estares. Não há atrasos, contratempos ou enganos. Existe, entretanto, o perigo da verossimilhança, esse gigante que nos assalta quando, entre o imaginado e o descrito, algo nos escapa ou excede no dizer.
No caso do texto a seguir, nada disso acontece. O poema “Encontro”, de Lina Tâmega Peixoto, é resultado de uma viagem feita por ela aos Açores para percorrer o caminho que seu tio Francisco desejou percorrer e não o fez. Lina viajou e escreveu estes versos, dedicando-os à memória do patriarca Manoel Inácio Peixoto, aquele que um dia transpôs o Atlântico em busca de uma vida nova no Brasil, como fizeram muitos de seus conterrâneos.
A nós, leitores, cabe o melhor da viagem: a leitura e a navegação em versos elaborados com a maestria e o bom gosto de quem sempre sabe o que faz.


ENCONTRO

Lina Tâmega Peixoto

À memória de Manoel Inácio Peixoto

"Tenho agora uma única obsessão: ir ao Açores em busca
das origens" (Francisco Inacio Peixoto em carta de 8/4/80)


Morei nos Açores por uma semana, eternamente.
A ilha construída
da forma mineral da noite
circunda o ar navegado no oceano.
Nela, desembarquei no cais
de onde o avô havia partido.

Lugares, ancestrais, afeto
são coisas arrebatadas à vida
e corroídas de invenção.
Conta a família, para aumentar o infinito,
a travessia do pai,
ainda menino, cortando sozinho
as vagas de suor e medo
repetidos rumos de começo e fim.

A calçada, acertos de floração vulcânica,
leva à Igreja de Nossa Senhora da Lampadosa
e me desconcerta ver dormida a luz
nas mãos da santa.
A pia de batismo, manchada de limo,
ainda úmida ao toque dos dedos,
embaça a esperada contemplação
- a de vivas cinzas caídas no chão
e a de muito antes, com grinaldas de água
molhando o recém-nascido -
Junto ao altar, um aroma seco rodeia
o jarro de flor.

A viagem descida até o fundo do corpo
desmancha-se em um nome.
Muitas vezes naufraguei
em meus próprios deuses
navegantes de um outro lado do mundo.

Este que procuro desdobra o passado nos retratos
e nas pinturas que seguram as paredes da casa.
Meu pai esculpe o rosto de seu pai
na certeza de que a imagem se assemelha
ao que ficou retido na infância.

Outras lembranças recolhem a visão
das rochas escuras e antigas
entornadas do vulcão.
Enraízam o sol e a seiva das videiras
e brilham com beleza tão intensa
como se guardassem dentro delas
auroras extintas.

Não há ossos.
Só o amor exarcebado pela solidão.
Escrevo a história deste
que vagueia pela Ilha do Pico
a respirar as sombras de sua aldeia
a ser trocada por uma pátria
desenhada de montanhas verdes
e de córregos e rio fechados
em cântaros de poesia e lama.

Deixo a Ilha, como fez o avô,
repetindo, com doçura, o que lá
submete a memória à desordem dos sonhos.
Eu já sou relíquia do acaso
que deixo em um canto da Ilha
ou em uma cidade de Minas.
Cataguases.

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