11/05/2016

LANTERNAS ALÉM DO JARDIM




LANTERNAS ALÉM DO JARDIM

Joaquim Branco

Uma vertente para a qual os poetas e ficcionistas sempre se inclinaram é a chamada linha da reflexão e da memória. E trata-se, modernamente, de uma tendência que reúne muitas produções tanto entre criadores quanto em teóricos da literatura.

Se se falar em termos cataguasenses, pode-se remontar, na década de 1920, a Ascânio Lopes – autor de “Cataguases”, que ao enaltecer ‘a mais mineira cidade de Minas Gerais’, transformou o poema na nossa primeira reminiscência literária digna de nota –, ou a Guilhermino Cesar, Francisco Inácio, Enrique de Resende e Martins Mendes, que não permitiram que jamais se esquecesse o córrego Meia-Pataca e a vida da cidade naquele tempo.

Na mesma trilha temática, Francisco Marcelo Cabral manteve a tradição com o seu "Inexílio" – o melhor livro escrito sobre a cidade –, ou Ronaldo Werneck, com seu discurso-corredeira sobre o Rio Pomba.

Agora, reporto-me a algo que os leitores também não poderiam deixar de conhecer: o poema “Carta de Cataguases”, de Lina Tâmega Peixoto, uma homenagem a sua mãe e – por que não dizer? – a Cataguases. Sobre o texto e sua autora, eu teria muito que dizer, mas, diante das poucas linhas que me restam e do que isso adiaria de prazer ao leitor, prefiro ouvir em silêncio a comovedora reflexão propiciada por esses versos.

CARTA DE CATAGUASES
Lina Tâmega Peixoto

Nada afasta o atordoado e leso dia
em que senti se apagarem as margens do mundo
onde cavas as águas do sonho.
Nada redime as formas de amor
e feições de encantamento, transcritas
por muitos anos em teu amargo e doce silêncio.
Eu estava lá e não soube arrancar de teus ombros
o manto de montanhas que tolhia
tua esperança, graça e brilho
com que reordenavas as coisas
da natural existência.
Agora, em penitência e dádiva, desejo tua morte diferente
atenta à glória e levantada do pranto
buscando-te para um passeio em tua casa.
Aflora o coração nos vasos de flores e orquídeas
concebidas como lanternas de jardim
e toma posse do que está aquecido
sob o chão duro do quintal.

Estás tão próxima, submersa no poço da insônia,
que louvo tua miragem e a cerco de filhos
que acariciam teu cabelo e o enrolam
como botões de rosa.
Vejo-te sentada na cadeira da varanda
espalhando no colo meadas de cores
e conduzindo com a mão o rebanho de linhas
para cintilar na toalha sinos de Natal.

Peço que lembres do que construí
camuflada no caos da infância.
Enclausurada nas palavras
deixei-as emendadas na garganta
e fiapos de voz, canto crepuscular,
ficaram à deriva das constelações do medo.

Deposito em teus ossos
– reino de herança ao abrigo da terra –
o óleo suave e espesso da lembrança
que ultrapassa a viagem circunscrita
a nascimentos e mortes.
E recorto na envelhecida porta da memória
as festas de aniversário,
a de borboletas de papel, pregadas nas árvores,
que apanhávamos com redes de filó
e a dos balões crepitando com iscas de fogo
na negrura do céu.
Os rumores de outrora renovam,
como armadilhas de sol,
a compassiva alegria no teu rosto.
Amarguro a perda dos signos do passado
que, indistinto, reconstruo com visitas à tua cidade
e com linguagens de lastro e palha
que contam à tua gente
como salvar-me da solidão.
Não me inclinei sobre tua imagem insulada no tempo
para juntas deitarmos sobre a pedra,
– adamantina pedra da pele e das fraturas do corpo –
que se aquieta em mim
a luz frouxa da meia lua
desfazendo as dobras de nossa história.

Procuro falas da tua vida
na seiva solar que escreve
teu infindo repouso
que arremesso às imprecisas raízes maternas.
Tanto mistério me consola e de tal modo
ordena o emaranhado da alma
que não percebo que lateja nos olhos
a mansa demência da tua morte, mãe.

(foto: Natália Tinoco)


Nenhum comentário: